Cidadania não é uma palavra qualquer. É uma figura de Direito. Uma superfigura
de Direito, em verdade, pois embutida no rol dos "fundamentos" da República
Federativa do Brasil. Está ali no inciso II do artigo 1.º da Constituição,
garbosamente perfilada entre os "Princípios Fundamentais" (Título I) do nosso
Estado. Seu preciso significado é este: qualidade do cidadão. E cidadão é o
habitante da cidade. Da "cidade-Estado"que, na Grécia antiga, era chamada de
pólis.
Pronto! O link vai tomando corpo: cidadania é qualidade do cidadão e cidadão é o
habitante da cidade como espaço das relações primárias entre governantes e
governados. Os governantes a representar a pessoa jurídica do Estado, os
governados a "presentar" (Pontes de Miranda) a difusa ou não personalizada
instância da sociedade civil. Cada um desses governados a encarnar a referida
figura do cidadão. Mas não de um cidadão aquoso e, nessa medida, tão insípido,
inodoro e incolor quanto a água potável que deu de faltar nos lares brasileiros.
Ao contrário, cidadão como integrante orgânico ou militante ou engajado da
sociedade civil perante o Estado. Envolvido com o dia a dia da população,
portanto.
Daqui se deduz que o típico do cidadão é se interessar por tudo o que é de
todos. Sempre na perspectiva de servir ao todo social mesmo. O cidadão como
símbolo da pessoa altruísta ou de alguém que veste a camisa da sociedade. Alguém
que faz viagem de alma, e não viagem de ego. Tão socialmente participativo que
no "Século de Péricles" (440-404 a.C.) se chegava a dizer: "Sou livre porque
participo". E não "participo porque sou livre", como atualmente se fala. O que
pressupõe a mais desembaraçada busca de informações sobre os negócios públicos
para que, num segundo momento, o cidadão já se posicione mais conscientemente
como soberano (a soberania popular é o segundo fundamento da República, nos
termos do inciso I do citado artigo 1.º e da cabeça do artigo 14 da Magna Carta
federal). E é como soberano que ele vai protagonizar o voto direto e secreto, a
iniciativa popular de lei, o plebiscito e o referendo (cabeça e incisos do mesmo
artigo 14).
É sob esse entendimento jurídico de cidadania que a nossa Constituição volta
muitas vezes ao tema. E volta em sentido afirmativo ou de forte prestígio. Para
fazer da cidadania um mecanismo de fiscalização, controle e acionamento do
poder. Um necessário instrumento de cobrança, denúncia, representação, queixa...
e também de colaboração, claro! O cidadão a vitalizar o lema de que "o preço da
liberdade é a eterna vigilância" (frase que ninguém sabe ao certo se de autoria
de Thomas Jefferson ou Stuart Mill). Ele totalmente livre para se informar,
vigiar e cuidar, seja por conta própria, seja requestando as autoridades. Mas
sempre do lado de fora do Estado, porque ver o Estado a partir dele mesmo é ter
a vista embaçada. O olhar anuviado de quem é observador e parte ao mesmo tempo.
Não assim com o cidadão enquanto agente exógeno perante ele, Estado, de sorte a
poder assumir-se como um pássaro solto na amplidão dos seus personalíssimos
cuidados para com a pólis. "Livre, leve e solto" (Nelson Motta), inclusive para
impedir que o atávico sono da nossa "pátria mãe tão distraída" venha a colocá-la
no despenhadeiro das mais "tenebrosas transações" (Chico Buarque).
Assim é que se explica, por ilustração, o seguinte catálogo de normas
constitucionais: os incisos XXXIII e LXXIII do artigo 5.º, este a criar o
mecanismo da "ação popular" e aquele a consagrar o direito de "receber dos
órgãos públicos informações de (...) interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral"; o § 3.º do artigo 37, remetendo à lei "as formas de
participação do usuário na administração pública direta e indireta", de maneira
a que sejam especialmente regulados "as reclamações relativas à prestação dos
serviços públicos em geral" (inciso I), "o acesso dos usuários a registros
administrativos e a informações sobre atos de governo" (inciso II), assim como
"a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de
cargo, emprego ou função na administração pública" (inciso III); o inciso IV do
§2.º do artigo 58, que insere nas competências das comissões técnicas do
Congresso Nacional e de suas Casas "receber petições, reclamações,
representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das
autoridades ou entidades públicas"; o §2.º do artigo 74, que faz de qualquer
cidadão "parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou
ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União".
Bem, cheguei aonde queria chegar: o Decreto Executivo federal n.º 8.243, de 23
de maio de 2014, que me parece equivocado quanto aos conceitos constitucionais
de cidadania e sociedade civil. E porque equivocado, traz uma e outra para
dentro da União. Busca integrá-las à estrutura do poder, para que elas atuem
mais e mais ali na própria ossatura orgânico-administrativa da nossa pessoa
federada central. Ora no interior desse ou daquele órgão, ora como parte dessa
ou daquela comissão, ora na intimidade estrutural desse ou daquele conselho... e
por aí vai. Mistura de papéis que mal disfarça duas coisas: a imperial liderança
do Estado em face dela, sociedade civil, e o recolocar da altaneira figura do
cidadão na subalterna condição de súdito. Isso porque, assim postadas do lado de
dentro dos aparelhos de Estado, a sociedade civil e a cidadania não têm o que
fazer senão ver quebrantadas ainda mais as suas forças e facilitado o que em
tais aparelhos é histórico lugar-comum: botar as mangas de fora. Esse mesmo
Estado que, no Brasil, chegou antes da sociedade e até hoje não a reconhece como
a única razão de ser da sua jurídica existência. Estado que demora demais a
entender que os súditos da sepultada monarquia têm o direito de se transformar
nos cidadãos da República finalmente partejada.
Temo pelo pássaro da cidadania a trocar o voo pelo saltitar na gaiola dos
conselhos populares ou coisa que o valha.
CARLOS AYRES BRITTO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO CONSTITUCIONAL PELA PUC-SP,
MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS, FOI PRESIDENTE DO TSE E DO
STF